Aos 93 anos, com plena saúde e cultivando a boa memória
- A Voz Regional
- 17 de out. de 2016
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Aos 93 anos, dona Ernesta Birelo de Carvalho não carrega o peso da idade e não tem tempos para ais e uis de lamúrias por estar muito ocupada com suas tarefas de dona de casa e de seus hobbys prediletos, o cultivo da memória e de plantas de seu quintal, na Rua Osvaldo Cruz, em frente de onde foi a primeira agência de Correios da cidade, nos tempos de mocinha.
Para ela não tem tempo ruim, pois tudo tem um propósito para algo bom. Passa o tempo mexendo em seu plantio de bananas, que, quando maduras, distribui para toda vizinhança. Lava roupa e louça, limpa seu cantinho construído com muito esforço. Dos hábitos antigos, conserva as baforadas no “paieiro”, uma “pinguinha” antes do jantar e de comer o que tem vontade, doces, torresmo, carne de porco. Dona Ernesta nunca fez restrições alimentares. “Nunca deixei de comer algo por causa da saúde, porque antigamente se gastava muita energia. O exercício era na roça, pegando na enxada, correndo atrás dos meninos quando iam brincar longe. Tempos difíceis, mas foram ótimos dias”.
A viagem
Vinda da Itália com a família ainda criança, dona Ernesta aprontava todas no navio, brincando com os marinheiros, assistir aos jogos com os irmãos, correndo pelos corredores até achar o salão de festas para ver as pessoas dançando e festejando. “Ganhei um baralho dos marinheiros de tanto que eu ficava rodeando eles, pedindo pra brincar. Eles me deram um baralho que tenho até hoje e guardo com muito carinho. Eu era muito arteira, todos tinham que ficar de olho em mim o tempo todo, pois eu não parava nunca. Teve uma vez que corri do meu irmão e subi no vaso sanitário, tinha uma janela perto, fiquei na ponta dos pés e com a cabeça para fora do navio olhando as ondas e os peixes pularem”.
Foram 18 dias e 18 noites em alto mar, presenciando perdas e tristezas, festas e alegrias, mesmo com pouca idade. A família desembarcou no Brasil, indo para Baltazar, atual Ribeirão Preto, morar em um sítio, onde os pais trabalharam em lavoura de café, depois para Mirassol e Monte Aprazível, onde dona Ernesta chegou aos 10 anos, sempre em sítios. “ Quando eu vinha para a cidade com meus pais, ficava admirada com o comércio, que na época era bem pouco. Eram duas farmácias, uma vendinha e o correio, que mais tarde passei a morar de frente para ele”.
Dona Ernesta presenciou o crescimento de Monte Aprazível, desde os seus 10, vendo novas lojas abrirem e logo fecharem, médicos chegando e atendendo a pequena população. “O correio que era bem movimentado por causa das mulheres mandando cartas para os seus maridos que estavam trabalhando longe para sustentar a família”. Explicou também que acompanhou de perto as eleições mesmo não participando delas. Conta ela que nunca teve contato direto com políticos, mas que também não tinha inimizade com nenhum candidato. “Sempre fui um pouco leiga, mas qualquer pessoa sabe do futuro que sua cidade precisa. Mesmo não votando, tinha minhas ideias, meus princípios e por isso mantinha relação com todos”.
Foram muitos anos de sofrimento nos sítios em que passou, mas nunca faltou dignidade e alegria na família, sempre tendo orgulho da educação que recebeu. “Nós íamos muito a bailes, eu gostava muito, mas só podia ir se um dos meus irmãos fosse, eu era adolescente e já naquela época era tudo muito perigoso, ouvíamos sempre falar de histórias assustadoras que aconteciam nos sítios. Além dos fatos reais, as pessoas falavam muito das lendas, de gente que morreu em encruzilhada, de lobos que pegavam os casais e por isso que os homens andavam com facas ou até mesmo armas na cintura, pra defender seus irmãos e sua amada. Esses acontecimentos geralmente eram em época de bailes de carnaval”.
Foi em uma dessas mudanças constantes de sítio que conheceu seu marido, o seu José. Casou aos 22 anos e se mudou para outra casa, onde construiu sua família aos poucos. Seu José foi para o exército para ganhar mais dinheiro, mas acabou voltando porque estava preocupado em deixar sua esposa e filhos sozinhos. “Ele sempre me mandava cartas relatando como eram os lugares, dizendo que estava com saudades de nós. Foi um ótimo marido e pai, por isso eu acho que ele voltou tão depressa, era um homem muito preocupado e responsável. Tivemos oito filhos, dois moram em outra cidade, o Orivaldo no Rio de Janeiro, foi pra lá ainda criança como coroinha do padre e por lá ficou e o Fábio em Neves Paulista; um já faleceu, o Dão, sinto muita falta dele; e os outros moram por aqui, o Ozair, Nezão, Mazinho, Nego e a única mulher, Odete. Tenho bastante contato com eles, principalmente com o Ozair e o Mazinho que moram comigo. Quando fico doente, gripada, a Odete me busca e passo uns tempos na casa dela até ficar 100% e voltar para minha rotina. Se tirarem meus afazeres, acho que fico doente de verdade”.
Dona Ernesta passou por muitos problemas e dores. A morte de seu José, a morte do filho, e mesmo assim continuou sua vida, sustentando a família. “Sou uma pessoa muito difícil de se emocionar, não chorei no velório do meu marido e nem do meu filho, mas a dor eu guardo comigo e confesso que às vezes é um pouco insuportável. Acho que a conseqüência de segurar as lágrimas é o acumulo de dor que ela se torna, você acaba não desabafando”.
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